Lucidez

tentei caber
mais de uma vez
na grama baixa
da humanidade
tentei nas luzes
do tarde asfalto
na mais calada
da adversidade
nas isoladas
pampas infinitas
nas vis entranhas
anis dos estratos
tentei caber
mais uma vez
nas espelhadas
casas da vontade
petrificadas
águas mar de jade
tentei caber
nos teus porquês
mal pendurados
cintilantes bares
mais que caber
desmoronei
retorno às fronhas
jazendo em seus lábios


Felipe Gregório

Belo

um belo poema se escreve
com belas feridas
as belas feridas morfadas
em belas palavras
surgidas de um belo bradado
num belo cenário
montado por belas memórias
de um belo momento

um belo poema é um contexto
onde belas idéias
reúnem-se em belas passadas
é bela sua dança
tão bela quanto um poemeto
com belos laranjas
de um belo poente abrasado
por belas celestes

um belo poema tem jeito
de um belo poema
e o jeito de um belo poema
é uma bela incógnita
é bela a mudança das coisas
de um belo olho a outro
são belos seus brilhos serenos
de belos encontros

um belo poema termina
em uma bela retórica
montada com bela ternura
a findar versos belos
um belo poema talvez
nunca seja mais belo
que as belas palavras faladas
a boca calada


Felipe Gregório

Tons

entre o verde e o ciano
há um abismo maior
que a distância entre
um bom dia e outro
entre a luz e a sombra
é menor a distância
que a que há entre
um beijo e um engano

e os amores se enganam
em seus traços que travam
fronteiras irreconhecíveis
num balaio de névoas
dançantes, espessas,
inatas ao conhecimento

porque somos verbos
conjugados com tempo
o mundo é gradiente
porque entre o presente
e o passado os ventos
se encontram freqüentemente

e o sabor das coisas
é até engraçado
e o tempo não demora
e os caminhos declaram
que os passos
são todos feitos de memória


Felipe Gregório

Algum canto

algumas verdades são farsas
o próximo verso é
lindo
algumas palavras descalças
são todo o prazer
de um sorriso sorrindo

alguns amores não têm graça
como se um verso
exibido
algumas pessoas não sabem
guardar o viver
num jardim colorido

alguns dizeres são trapaça
e o verso então segue
inibido
alguns olhares ultrapassam
o próprio querer
e a cor do vestido

algumas caras são escassas
o verso até perde
sentido
algumas ações bem mais raras
possuem o poder
pra parar qualquer rio


Felipe Gregório

Janela

Da janela posso vê-lo, este pedaço
tão modesto do que é a humanidade,
tão modesto, talvez não seja verdade
contaminando o caminho que eu traço.

Mas não há neste poema tanto espaço
como há no peito espaço pra saudade,
o que quero, e que a todos persuade:
um feel good genuíno a um bobo lasso,

pois minha janela mórbida não sabe
capturar dos céus tal coisa e pôr nos lábios,
da cozinha só me sobra este pedaço.

Tão formosa toda e qualquer raridade,
tão pequena a força da comunidade,
tão suposta como garantida a vida.


Felipe Gregório

Love Game

Entre a sua boca e a taça
descansam as palavras
que você nunca disse,
nunca engoliu, e ninguém
jamais pôde encontrar.

Palavras onde talvez se
esconda um sol, um grito
um sorriso
um ritmo impreciso
ou um medo antigo

— sempre têm as pessoas
um medo antigo.
Palavras que, reunidas,
como um grupo de quatro
ou cinco amigos, assistem

nascer a uma noite qualquer
de ares divididos.
Palavras que, uma por uma,
roubarei do mesmíssimo jeito
que sua taça não fez.


Felipe Gregório

Oito

A palavra, se pudesse
ser tocada, seria um
líquido viscoso como
a tinta que a reproduz,
porque pouco se observa
do tanto que se diz
e quando se percebe
já é tarde para se escrever;

Nem toda Flávia é loira
nem todo Sol é nosso
— é só no dia da mulher
que todo dia é da mulher.
Nem todo pensamento
é verdadeiro intento
e toda coisa parece
ser o que é.


Felipe Gregório

Jornal

Roberto, Roberto
na máquina das letras
datilografava o futuro
de ontem com a cara
bem mais que amassada
do verão
O que seria da chuva forte
que caiu na sexta-feira,
das árvores que caíram
com ela
e do José, que completava
cento e cinco anos
na sexta, na mesma sexta
quando meus sapatos novos
chegaram?
O cemitério amazônico
recebe milhares de árvores
por dia
A pobre-coitada
da hipocrisia, usada
e abusada e que ninguém via
Roberto, Roberto,
o que será da sexta-feira?


Felipe Gregório